Por Guilherme de Souza Tocantins
O maneirismo de Wim Wenders por vezes parte do realismo mundano para estilizar a mise-en-scène e abordar histórias peculiares, como o relacionamento trágico em Paris, Texas, a busca pela humanidade em Asas do Desejo, a paternidade imprevisível em Alice nas Cidades e as amizades excêntricas em No Decurso do Tempo e O Amigo Americano. Este utiliza a vida monótona de Jonathan (Bruno Ganz), um pacato restaurador de quadros, para introduzir eventos absurdos e burlescos a partir do particular Tom Ripley (Dennis Hopper), o amigo americano. Com a morte iminente devido à sua doença, Jonathan se dispõe a Tom para assassinar pessoas e deixar uma herança para a sua família. O charme da narrativa está na relação particular dos dois personagens e nos eventos absurdos que vivem juntos, e sobretudo na mise-en-scène tão palpável ao realçar os detalhes visuais e sonoros das locações para nos transmitir a sensação de estarmos lá. Wenders cria um mosaico vívido de retratos urbanos tão sensorial em sua crueza e beleza, seja em uma paisagem idílica, seja na arquitetura urbana bruta.
Na primeira cena, Derwatt (Nicholas Ray) é apresentado como um estranho ancião ranzinza com a personalidade refletida no apartamento espaçoso e rústico para seu isolamento psicológico e profissional de falsificador de quadros, uma zona neutra entre as realidades de Jonathan e Tom. Este tem a sua angústia febril e inquietante refletida nas cortinas e lençóis vermelhos de seu quarto escuro, e a sua solidão enfatizada pela casa onde mora na fria Hamburgo, similar a uma réplica barata da Casa Branca. É como se o seu envolvimento com a falsificação contaminasse o mundo ao seu redor e o falsificasse também, alavancando a sua crise existencial.
O seu deslocamento e solitude são tão grandes que o perseguem até mesmo nos Estados Unidos, evidente no plano geral que o enquadra caminhando de maneira quase suicida na beira da rodovia, humanamente minúsculo, frágil e vulnerável em comparação aos prédios que o engolem na paisagem urbana. O seu caos está no verde mórbido e intoxicante que o acompanha em algumas locações, incluindo a oficina de Jonathan, como um corpo estranho que adentra o seu mundo e traz consequências perigosas a despeito da estranha amizade. Outra locação é a sala de sinuca onde Tom afoga-se em sua melancolia e a registra em seu gravador e nas fotografias polaroid. A oposição ideal a esse seu estado de crise é a relação genuína com Jonathan, que é preservada com zelo.
Já a atmosfera de Jonathan é serena e silenciosa como a sua oficina, de iluminação leve e tons amadeirados, onde as molduras e ferramentas são extensões de seu corpo e comunicam a sua relação íntima e reverente com a arte divina, ilustrada também pelo plano detalhe das suas mãos trabalhando delicadamente. Diante da morte iminente, o seu mundo adquire uma atmosfera melancólica com o profundo e gelado céu azul, e as construções ríspidas, úmidas e frias que o compõem. O pouco calor que lhe resta está na sua família, realçado quando o Sol quente pinta o céu e as ruas com as suas cores saturadas, mas o seu envolvimento nos crimes deteriora o seu lar e a sua sanidade mental, visto que adquire um comportamento autodestrutivo e que o gera entusiasmo perante os homicídios.
A montagem do primeiro assassinato é maravilhosa, pois o constrói progressiva e conjuntamente à tensão de Jonathan, nos mergulhando nas locações e transportando por elas, desde as externas a caminho da estação de trem, que destacam o trânsito caótico e a imagem opressiva e os sons estridentes dos trilhos acima do protagonista. A inquietação intensifica conforme Jonathan tenta agir naturalmente ao se misturar aos passageiros para se aproximar do alvo e ao persegui-lo nos corredores claustrofóbicos do metrô e da estação, esta filmada pelo seu ponto de vista em um momento que reforça o sufoco. A sequência se aprofunda quando Wenders amplia a nossa visão com os planos abertos da estação para transmitir o receio de que Jonathan perdeu o alvo de vista.
Essa aflição é descarrilada quando Jonathan não age naturalmente após o assassinato (o mero pintor que é) e é registrado pelas câmeras de segurança enquanto corre pela estação. A sua desestabilização escancara-se quando ri em um êxtase bizarro enquanto corre pelo túnel iluminado por um neon verde e entorpecedor. A distorção estilizada do seu mundo também surge de maneira muito bonita quando ele vai a um bar após o assassinato. Este tem a composição visual ao mesmo tempo, orgânica e caricata, como se tirada de um noir com a arquitetura urbana bruta e crua (praticamente velha), a fumaça saindo dos telhados com os outdoors, o restaurante iluminado e o céu alaranjado similar a uma pintura. É um registro tão vívido.
O segundo assassinato tem sua sequência construída curiosamente como um thriller de ação e espionagem, novamente com a trilha de suspense e a montagem gradualmente angustiante, e com os corredores sufocantes dos asfixiantes. A ação está no combate aos inimigos que são jogados do trem em movimento, e a espionagem (a meu ver, ainda mais interessante quando executada) na escuridão do vagão ao entrar no túnel, mas principalmente na quando Tom se mistura aos demais passageiros para não ser notado pelos inimigos, usando um óculos de grau e uma roupa que se tornam um disfarce, tão divergentes dos demais figurinos que veste ao longo do filme. Desta vez, a angústia de Jonathan é exprimida quando ele coloca a cabeça para fora do vagão e grita desesperadamente, assim como antes se enforca acidentalmente com a corda e põe a pistola sobre o travesseiro em seu rosto na noite anterior.
A catarse narrativa ocorre na linda e tragicômica sequência da praia após a madrugada melancólica, na qual Wenders realça a beleza serena do local (a areia úmida, o mar, o nascer do Sol e até mesmo a explosão da ambulância, um expurgo literal dos conflitos) e, com um humor mórbido, mostra a brincadeira de Jonathan abandonando Tom na praia e morrendo subitamente logo em seguida enquanto dirige ao lado da esposa. A despedida amarga desse arco está em Derwatt, que simplesmente observa o pôr do Sol como um narrador excêntrico de um conto devasso e vai embora, caminhando pela mesma rodovia que Tom, sozinho e sem rumo.
O Amigo Americano une maravilhosamente o mundano e o absurdo, a sua história se desenrola como um surto do cotidiano do qual surge uma linda e sincera (dentro do possível) amizade entre Jonathan e Tom, um bromance em meio a situações insanas e destrutivas. É linda a sensibilidade de Wenders para trabalhar personagens tão vulneráveis e alheios em seus mundos, presos na inércia do modo automático em que vivem, cuja melancolia é perfeitamente traduzida visual e sonoramente, com os espaços e suas sonoridades que ecoam os mundos interiores de cada um. A mistura entre o comum e o inusitado também comunica a posição do maneirismo na busca por novas abordagens estilísticas da linguagem cinematográfica na mise-en-scène de um Cinema já amadurecido. No caso de Wenders, uma estilização baseada no corriqueiro.
*GUILHERME SOUZA TOCANTINS é entusiasta e aspirante a crítico de cinema