23 de novembro de 2024 7:58 AM

O estudo do luto em One More Time With Feeling

Foto: Acervo Pessoal

Tal como cada álbum, canção e verso de Nick Cave, One More Time With Feeling possui uma essência tão pujante e pulsante que adquire uma vida própria, uma autoconsciência que rompe interpretações artísticas e simbólicas limitantes e simplistas, e possui uma cosmologia permeada por eterismo e espiritualidade monumentais, onipresentes e onipotentes. O centro do documentário reside no luto pela trágica e catastrófica morte de Arthur, filho de Nick e Susie Cave, e no seu estudo por meio dos diálogos e sobretudo das canções tão lindas e dolorosas que compõem Skeleton Tree, o belo e sombrio álbum premonitório cujos versos escritos antes da morte de Arthur anteveem a tragédia. A sensibilidade e vulnerabilidade de Nick, Susie e dos Bad Seeds, com destaque para Warren Ellis, são fundamentais para enfrentar o luto e encontrar uma fonte de esperança, ações que se concretizam de maneira distinta em cada uma das canções de Skeleton Tree.

A escolha do preto e branco por Andrew Dominik retrata e transmite a dor aguda e o peso brutal do luto carregado por Nick e Susie, de fato como se vivessem em um mundo sem cores, apenas a sua promessa, como é ilustrado em Distant Sky, ao lado da ânsia por cura e esperança, que residem no âmago etéreo e hermético das canções. Outro momento em que as cores dominam a tela ocorre quando Earl fotografa Nick, Susie e os Bad Seeds, e revela a força que o gêmeo de Arthur, e agora filho único, possui para colorir e iluminar a vida dos pais e até mesmo o peso que carrega como um símbolo de esperança para ambos, uma espécie de luz no fim do túnel, um motivo para continuar a vida, e um pedaço fundamental de suas almas que ainda vive e pulsa. Isto também ilustra como ele, mediante a luz e as cores, acessa e revela o íntimo dos pais, suas nuances, medos, dores e angústias.

O estado emocional mental de One More Time With Feeling é logo apresentado no diálogo inicial entre Warren e Andrew sobre a delicadeza e o desconforto de abordar a perda de Nick, e a importância de tratá-la com cuidado, respeito e sensibilidade. Nick, por sua vez, surge consternado, impaciente e aéreo nos pensamentos à deriva, o que é esboçado pela sua narração em off meditativa, preparando-se física e mentalmente para as gravações, e conversando com Dominik para compreender a sua direção e encontrar uma sintonia com ela. Este estado soturno e angustiado de Nick é aprofundado na cena em que ele entra no estúdio para tocar, comenta sobre a dificuldade tremenda que sente e se pune por não saber quais notas tocar no piano, não ter aquecido e fortalecido a voz e achar que a está perdendo junto com a sua memória. Esta inquietação também é espelhada com a mistura entre os diálogos, os vocais e os instrumentos, o que torna o campo sonoro confuso e incômodo, e assinala que os músicos e os realizadores ainda estão em busca de um ritmo conjunto para as performances.

No que tange da melancolia cética de Cave, esta é revelada quando ele comenta sobre a resistência humana a mudanças e como eventos catastróficos nos mudam bruscamente a ponto de não nos reconhecermos e sermos lançados em uma crise que nos faz desabar aos prantos em braços de desconhecidos, com a sensação amarga de tornar-se um objeto de pena diante de tamanha compaixão. Tal resistência transparece o orgulho do artista e acima de tudo a necessidade de ser sensível e vulnerável às pessoas ao seu redor, o que posteriormente motivou tanto o The Red Hand Files, espaço em seu site oficial no qual responde diretamente a mensagens de seus fãs, quanto a sua turnê em que se disponibilizou a um diálogo aberto e pessoal com os que se fizeram presentes.

O conflito de Cave é tão desconcertante que beira o contraditório quando diz nos versos de Hell Villanelle que existe mais Paraíso no Inferno. Tal aflição constante é muito similar à que ocorre ao longo de seu processo de escrita mencionado em Fé, Esperança e Carnificina, livro de conversas entre Nick e seu amigo Seán O’Hagan, no qual imerge em um estado de dúvida, ansiedade e depressão tão intensos e corrosivos enquanto busca arduamente revelar as canções que irão compor o seu álbum. O abalo também está evidente na conversa entre Dominik e Cave sobre o peso decadente do envelhecimento e principalmente no espanto de Nick com a aparência que adquirira na atual idade.

A fragmentação espiritual de Nick é observada quando ele diz que não enxerga a vida como uma história, ao contrário de Dominik. Esta discordância é extremamente interessante, pois consiste nas expressões artísticas divergentes e particulares de ambos, visto que a narrativa perde espaço nas composições de Cave, que a estrutura de maneira menos linear e mais circular, e predomina na filmografia de Dominik, ainda que o cineasta também a explore ao lado da subjetividade em sua filmografia. Esta discrepância aprofunda a cosmologia de One More Time With Feeling, visto que há uma colisão genuína e frutífera entre as visões de Andrew e Nick mediante o contraste entre o subjetivo e o objetivo, o abstrato e o concreto, ambos artistas em busca de uma sintonia equilibrada na qual o primeira busca dissecar o estado do segundo, este que tenta libertar os seus pensamentos e tormentos em composições não engessadas.

O refúgio de Nick está em sua família, o filho Earl e a esposa Susie, esta que ocupa uma posição divina em sua vida e lhe desperta um fascínio surreal, a exemplo de quando ele a define como uma mulher tridimensional em uma cena gótica na qual ela caminha pela praia em câmera lenta, como se estivesse em outro plano de existência e fosse capaz de manipular o tempo e o espaço. A vida artística singular de Susie também é apresentada por Dominik, bem como o seu próprio processo de confronto ao luto, com ambos ao lado de Earl para criar um porto seguro de amor e confiança, com ênfase para os momentos pesarosos em que ela e Nick conversam aberta e diretamente sobre Arthur e a sua morte. Warren Ellis, membro fundamental dos Bad Seeds, é outra figura essencial da vida de Nick, dado que ambos compartilham uma conexão musical íntima e extraordinária, inconfundível nas canções que compõem e interpretam de maneira tão bela, enérgica e sentimental.

As performances musicais estão intrínsecas à fala de Nick sobre a natureza acidental da arte e a sua manifestação como uma comunicação com deuses, assim como quando ele diz que reconhece e teme o poder absoluto das palavras como se fossem um força maior, esta verdadeiramente tão nítida e pulsante em suas canções e performances. A origem das canções está na crueza das experimentações hipnóticas de Warren no sintetizador e da escrita, dos vocais e do piano de Nick, e atinge o ápice nas performances com os Bad Seeds, como se transcendessem de um campo musical para outro, etéreo e místico. Isto se reflete na transformação da mise-en-scène durante as performances, que acompanha a transcendência do plano de existência musical e a responde ao moldar a sua linguagem de acordo com as canções para expressar a atmosfera divina e particular de cada uma delas.

A transformação inicia com a narração de Steve McQueen por Cave enquanto todos se preparam para as performances, na qual cada verso, como em um transe de uma reza, dá vazão a palavras que estão à deriva, como em um delírio, e em busca de um sentido para si próprias e na narrativa que tentam contar, assim como Nick, Susie e os Bad Seeds encontram progressivamente a sua sintonia no documentário, moldando e preparando o ambiente para as músicas que trarão. O princípio de Skeleton Tree está em Jesus Alone, íntima à crença de Nick sobre a música partir do inconsciente e possuir um caráter premonitório, visto que ela precedeu o falecimento de Arthur ao ser composta antes da tragédia. A canção comprime o espaço-tempo com Warren na sala de controle iluminada e Nick no estúdio escuro, um contraste que representa a trajetória de Nick para expurgar o luto e atingir a iluminação ao revelar as canções.

Em Girl in Amber, o estúdio é distorcido pelas lentes grande angulares que espelham tanto a consternação de Nick quanto a sensação de adentrar outro estado de existência, em que a câmera orbita os músicos e ressalta os vocais brutais e pesarosos de Cave. Já em Magneto, a mudança visual está visível na montagem que torna os planos maleáveis ao dissolvê-los e realçar a sensação de transe musical, este que adquire uma inquietação dissonante e potente na performance de Anthrocene, nítida nas luzes piscantes, na bateria e no sintetizador, que mudam a configuração do estúdio quando entram em atividade. Em concordância com essa condição irrequieta da canção, as câmeras abandonam a trajetória circular em torno dos músicos e assumem movimentos aéreos ativos e dinâmicos que acompanham a pulsação intensa e aflita da canção, perseguindo-a e adaptando-se à sua ordenação ao transitar entre os membros da banda.

Em oposição a Anthrocene, I Need You manifesta uma natureza contida e meditativa com a decupagem estática e objetiva direcionada aos Bad Seeds e principalmente a Nick, com ênfase em primeiros planos e no sintetizador de Warren que integra o campo instrumental em uma hipnose. Isto é reforçado por Distant Sky, que pela primeira vez introduz cores no documentário em sintonia com a iluminação acentuada nos músicos, a luz quente atrás de Else Torp e a branca atrás de Warren, as quais transmitem o astral sonhador, esperançoso e revigorante da canção, assim como os vocais de Else e os solos de violino de Warren, que acrescentam uma doçura mágica e gentil à canção. O clímax da canção é ilustrado pela câmera que atravessa o estúdio até chegar à sua área externa e por fim ao espaço sideral.

A conclusão da trajetória sentimental através de Skeleton Tree consiste primeiramente na forte canção homônima que retoma a melancolia com o preto e branco ao mesmo tempo que a integra a uma promessa de esperança, esta que encontra seu lugar em This Much I Know To Be True, documentário que aborda os álbuns Ghosteen e Carnage, e segundamente na gravação em que Arthur Cave canta Deep Water, canção de Marianne Faithfull, registrada antes de sua morte, que simboliza a catarse de toda a jornada musical pelo luto, e suas agruras, retratada no documentário. A linguagem da unidade estilística concebida por Dominik traduz e impulsiona o estado e a expressão emocional de Nick, Susie e os Bad Seeds, especialmente por se conectar e moldar especificamente a cada canção de Skeleton Tree, e assim transformar os cenários para representá-las audiovisualmente.

As canções atuam como ramificações da consciência de Cave e tornam Skeleton Tree um limbo musical, um refúgio em ebulição, efervescente e anestésico ao unir tanto as dores quanto a busca pela cura. Esta sensação de espaço-tempo alterado também identifica-se com o momento em que Nick dá pouca importância à continuidade e reflete sobre a elasticidade do tempo, a importância de viver o presente, e o significado e estado de permanência das pessoas em vida. Tal perspectiva de fragmentação também se relaciona à descrença de Cave diante da narrativa, às suas canções que se tornam cada vez menos narrativas e à sua crença de que elas respondem a uma certa necessidade para encontrar o devido propósito, como se obedecessem espontaneamente a regências maiores.

Essa visão está intrínseca ao que Nick menciona em Fé, Esperança e Carnificina sobre suas canções encontrarem o próprio sentido quando tocadas ao vivo, pois todas dependem do envolvimento genuíno da plateia e do significado que ela lhes dá em seu momento mais puro e convulsivo. O desprendimento de Cave diante de suas composições também se relaciona à sua fala sobre não fazer ideia do que faz no documentário, estando à mercê da experiência. Esta postura se assemelha à abordagem de Reinhard Kleist em Piedade de mim, HQ que idealmente une realidade e ficção para criar uma narrativa simultaneamente crua e onírica na qual Cave deve abdicar de sua obsessão de brincar de Deus ao criar personagens e universos em suas composições e buscar controlá-los obsessivamente a ponto de fazê-los voltarem-se contra si próprio.

Com as canções de Skeleton Tree como fio condutor de sua narrativa One More Time With Feeling utiliza a experimentação da linguagem para conceber uma mise-en-scène que comunica o poder surreal e divino da música como meio transformador para a salvação e iluminação, e cria um estudo sensível e atípico sobre o luto e o seu estado agudo de vulnerabilidade. A chave para o sucesso dessa exceção está na delicadeza e sensibilidade de Dominik para não exceder o tênue limite da privacidade de Nick e Susie, e encontrar o equilíbrio para discorrer sobre a perda e suas dores nos diálogos e sobretudo nas canções.

*GUILHERME SOUZA TOCANTINS é entusiasta e aspirante a crítico de cinema

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